Filme O Céu de Suely | resenha

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Entre o sonho de partir e a coragem de ficar, O Céu de Suely revela o preço da liberdade em uma pequena cidade do sertão. Sobre isso que fala mais essa incrível resenha de Louis Leite!

Apesar do título, o longa brasileiro narra os dias de Hermila, uma jovem de vinte e um anos e mãe de um bebê, a quem chama de Matheusinho. Nos primeiros instantes do filme, sob narração da própria Hermila e frames que remetem às gravações de uma câmera antiga, conhecemos o romance que ela tivera com Matheus, rapaz por quem fugira para São Paulo em busca de um futuro melhor.

Após esse pequeno contexto, somos trazidos para a atualidade, onde Hermila desembarca em Iguatu, sua cidade natal, trazendo o filho no colo e algumas malas. No posto de gasolina onde o ônibus a deixa, é recebida pela tia Maria (Maria Menezes), que a conduz de volta à casa da avó. 

A partir da conversa que têm, revela-se que a fuga de Hermila para São Paulo foi um gesto impensado e doloroso para sua família. Ela partiu sem dar explicações.
Descobrimos então que, em São Paulo, o casal não se adaptou, o dinheiro acabou e, enquanto Hermila retorna ao Ceará, Matheus permanece lá para resolver “pendências” —e enviar algum dinheiro para que ela se mantenha com o filho até que possam se reencontrar.

Contudo, essas promessas nunca se cumprem.

Ao tentar contato, Hermila descobre por terceiros que o marido está desaparecido. Preocupada, ela procura a sogra em busca de respostas sobre o paradeiro dele, e é nessa cena que o filme se torna ainda mais incisivo. Sob o pretexto de proteger o filho, a mulher justifica sua ausência dizendo: “meu filho só tem vinte anos…”, dando a entender que ele estaria apenas fugindo do fardo das responsabilidades como pai e marido. Matheus não estava desaparecido para sua mãe, apenas para Hermila e o filho deles.

E ele não apenas sumira, como também enviara à sua mãe o dinheiro que prometera a Hermila, quantia essa lhe permitiria sustentar o filho e ajudar sua família com as despesas.

Essa curta conversa entre elas expõe, ainda que sútil, um traço estrutural da nossa cultura: o perdão automático concedido ao homem, infantilizado para escapar das suas responsabilidades. Enquanto Matheus é “só um garoto”, Hermila, da mesma idade, já é cobrada como uma mulher madura, obrigada a carregar o peso da maternidade sozinha.

Aïnouz condensa, nesse diálogo, toda a desigualdade entre a juventude masculina e a feminina. É um dos momentos mais tocantes do filme pra mim.

Com o tempo, a rotina na casa da avó se torna cada vez mais insustentável. O alimento falta, a tensão cresce, e Hermila sente-se um fardo. O sentimento de clausura é sufocante, não apenas nas paredes da casa, mas no sertão ao redor, um espaço árido que reflete o deslocamento emocional da protagonista.

Sem alternativas, Hermila decide recorrer a um plano extremo: rifar o próprio corpo para juntar dinheiro e deixar a cidade. Sob o pseudônimo de Suely, que dá nome à obra, ela inicia uma campanha que se espalha rapidamente entre os homens locais.

A avó, ao descobrir, reage com raiva, ao mesmo tempo que se lamenta pelas escolhas da neta.
Esta é, também, uma das cenas mais cruas do filme, cuja atuação das atrizes envolvidas transmite com clareza toda a combustão de sentimentos que as personagens deveriam estar sentindo ali.

A avó, apesar de violenta, sente, acima de tudo, dor. Ela, como tantas pessoas da sua geração, não expressa seus sentimentos de forma saudável. E, apesar da reação, é perceptível a melancolia irreparável no que se descobre sobre Hermila. Suas reações são conflitantes, e toda a atuação em torno disso é pura, orgânica. Aplaudível. Ainda assim, é impossível não admirar a lucidez de Hermila diante das próprias escolhas. Aïnouz filma a degradação não como derrota, mas como forma de resistência, uma tentativa desesperada de retomar o controle das coisas.

Os diálogos, carregados de gírias e do sotaque cearense, não soam artificiais nem rebuscados. Trazem a filosofia do cotidiano, a sabedoria que, por mais simples que pareça, nasce da sobrevivência aos dias ruins.

Karim Aïnouz nos apresenta personagens marcantes sem precisar aprofundar seus passados. Gestos e palavras bastam para compreendê-los. É um cinema que aposta na observação, e que, por isso, marca.

Hermila também é uma protagonista feminina muito bem construída. Há complexidade humana nela. E esse trabalho se deve, também, à atuação impecável de Hermila Guedes, que lhe deu vida e nome.

Do choro à raiva, dos sorrisos ao olhar sem perspectiva, todo sentimento da jovem foi traduzido à ótica de qualquer espectador. É impressionante.

O sertão, por sua vez, serve muito mais do que cenário. Sua imobilidade e sua estética são metáforas poderosas para os sentimentos e condições de vida dos protagonistas e demais moradores. Foi um dos elementos mais bem utilizados para intensificar, sobretudo, as emoções de Hermila —que nos conduz à descrença de que haja um futuro melhor, este que é o centro de suas ambições.

O Céu de Suely é, contudo, um estudo sobre a coragem de recomeçar.

E, como de costume, não me aprofundo no desfecho. Prefiro deixá-lo em aberto, porque acredito na curiosidade que nos instiga a provar as coisas.

Louis M. Leite nasceu na ilha São Francisco do Sul em fevereiro de 2007. Sua paixão pela literatura se iniciou ainda na infância, evoluindo para a escrita posteriormente, aos doze.

Familiarizado com o cinema e o teatro, pode ser encontrado na cidade de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, em eventos culturais e participando de projetos. Sempre está atrás de uma oficina de roteiro ou fotografia de cinema, não gosta de perder nenhuma oportunidade.

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