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A mail art nasceu quando artistas decidiram que a arte não precisava mais de paredes, molduras ou instituições para existir. Era hora de transformar cartas, postais e o próprio correio em um campo de criação livre e radical.

por Barbara Bublitz

Se você vai a uma exposição de arte e não entende muito bem algumas coisas expostas, bom, o que posso dizer é que 1º você não está sozinho e 2º a culpa não é sua. Existe, há algum tempo, alguns intelectuais pensando sobre as relações da arte com a vida das pessoas. Essas pessoas somos nós. 

Estudantes, moradores do interior, trabalhadores fabris, dona de casa, autônomo, professor de matemática, mãe-engenheira-civil-líder-religiosa ao mesmo. Todos nós. De sociólogos (1) a filósofos (2), existe gente pensando nisso. Nós deveríamos pensar também. 

De um modo fundamentado (3), mas bem generalizado (e me perdoem os especialistas, os meus ex-orientadores, meus colegas, so on), posso apontar uma culpa no Renascimento. A premissa da criação manual única de um artista genial que perdura desde então dificulta nosso desprendimento. Se não é pintura, se não está enquadrado, se não está no museu, se não está assinado, se não é original, ora, é arte? 

Essa discussão e o motivo pelo qual a arte está tão distante de nós, esses tantos demônios imortais com os quais devemos aprender a conviver, não é um assunto que pretendo tratar no momento. É importante considerar que o anseio para aproximar a arte de um campo mais democrático também não é da geração Facebook (aliás, sequer é da geração internet). 

A mail art (ou arte postal), é mais uma das manifestações artísticas que surgiu de uma movimentação contra a cultura vigente. As agitações políticas da década de 1960, assim como o crescimento do acesso às universidades, levou muitos trabalhadores culturais (4) a caminharem no sentido oposto à arte institucionalizada, em busca de uma prática criadora menos hierarquizada e isolada em relação à sociedade. Alguns desses artistas faziam parte de um grupo conhecido como Fluxus, responsável por grande parte das transformações na arte da contemporaneidade. 

Os trabalhos de mail art surgem deste contexto e consistem basicamente em cartas ou cartões postais acompanhados de desenhos, colagens, pinturas, carimbos autorais e mensagens que possibilitem a subversão do sistema postal, dos carteiros e a troca de ideias entre os remetentes e destinatários destas correspondências. 

Livro Good Mail Day

A origem de tal ação, a exposição do descontentamento em relação ao sistema de arte, não está na mail art. Os dadaístas, no início do século XX, já questionaram a organização do campo artístico e abriram as possibilidades para as criações conceituais, ou seja, para os trabalhos artísticos construídos a partir de uma ideia, que se torna sua parte fundamental. 

Assim como os dadaístas, os criadores da mail art não objetivavam a criação de uma obra de arte e sim o contrário. O objetivo dessas pessoas era questionar e expor as fragilidades da arte. Para tanto, utilizavam o princípio de détournement, desenvolvido também por um movimento de contracultura, o qual propõe a destruição de um sistema pela utilização de seus próprios meios.

Para se ter maior clareza do pensamento que regia o contexto das ações da mail art, coloco uma citação da campanha Desista da Arte/Salve os famintos, de Tony Lowes, que representa um extremo das linhas ideológicas citadas anteriormente: 

Ver e criar uma imagem são a mesma atividade. Aqueles que criam a arte também estão criando os famintos. Nosso mundo é uma ilusão coletiva. É uma grande ironia que o mito do artista celebre o sofrimento, enquanto são aqueles que nunca ouviram falar de arte, aqueles sofredores famintos e com doenças endêmicas, que são os verdadeiros pobres e infelizes do nosso mundo. E nessa perversão do que foi um dia uma busca religiosa, os artistas de hoje negam ser mais do que trabalhadores, negam a arte em si, e então se mobilizam para apagar para o homem a luz que existe dentro dele. A arte agora é definida pela elite autoperpetuante para ser comercializada como uma mercadoria internacional, um investimento seguro para os ricos que têm tudo. Mas chamar um homem de artista é negar a outro um dom igual de visão; e negar a todos os homens a igualdade é reforçar a injustiça, a repressão e a fome. Tudo o que é aprendido é alienígena.

Nossa história é construída a partir da herança de homens que aprenderam somente a substituir um conceito por outro. Nós lutamos para agarrar o que não sabemos, quando nossos problemas não serão resolvidos por novas informações, mas pelo entendimento do que o homem já sabe. É hora de reexaminar a natureza do pensamento (…) Estamos vivendo num baile de máscaras: o que pensamos ser a nossa identidade é um jogo de noções recebidas pelo sistema educacional, preconcepções que nos prendem à história. A crença em nossa própria identidade gera tristeza sem fim: nosso isolamento, nossa alienação e nossa crença de que a vida de outro homem é mais interessante do que a nossa. É somente através da valorização igualitária de todo o mundo que qualquer um de nós encontrará a libertação. Um fim para a história é nossa exigência de direito. Continuar a produzir arte é ficarmos viciados em nossa própria repressão. (HOME, 2004, p. 120-121)

Percebemos que a mail art possibilita a comunicação direta com o público, sem as instituições como intermediários privilegiados. Os meios de produção de arte são descentralizados e as publicações passam a prezar a quantidade, não apenas a qualidade uma vez que quanto mais volumes produzidos (ainda que precários) maior a potência de leitor a alcançar. Esta é uma característica que se opõe claramente ao valor econômico supervalorizado da arte. Surgida com o objetivo de criar novas significações para a arte, a mail art favorece ainda mais a ampliação da noção de rede e amplifica outras mídias, tais como telefone, fax e internet. 

Aqui estão então os precedentes da arte telemática, arte de rede, net arte ou web arte. Mas esse é outro papo. 

* Imagem do topo enviada por Charles Farrell, ao blog 3ByTheFire.

Referências: 

(1)BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

(2) RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org. Ed 34, 2005.

(3)FREIRE, C. Arte Conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006.

(4)HOME, S. Assalto à cultura: utopia e subversão guerrilha na (anti) arte do séxulo XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

(5) Essa imagem as próximas foram retiradas da internet em fontes diversas. 

(6) Imagens retiradas da publicação: FREIRE, C. (org.). Hervé Fischer no MAC USP: arte sociológica e conexões: arte-sociedade-arte-vida. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2012.

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