A Grande Fome da Idade Média

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Se você conhece a história da João e Maria, comedores de criancinhas, ou já ouviu falar sobre canibalismo na Europa, precisa conhecer a Grande Fome da Idade Média. Depois pode se perguntar como um continente inteiro pôde chegar a tamanha miséria.

O cenário: Europa, entre o pão e o desespero

Ao longo dos séculos medievais, a fome era uma ameaça constante. Clima instável, guerras e sistemas agrícolas frágeis tornavam a produção de alimentos imprevisível. Uma má colheita, aumento de impostos (em grande parte pagos in natura) ou o aumento no preço dos alimentos poderia ter efeitos catastróficos. Quando havia más colheitas e excassez de alimentos, a crise atingia ricos e pobres, mas era o povo — os que viviam do próprio cultivo na sociedade feudal — quem sentia primeiro a pancada da escassez e quem que mais sofria seus efeitos.

O historiador francês Jean Verdon, no livro Sombras e Luzes da Idade Média (sem tradução para o português), descreve um dos episódios mais chocantes da Idade Média: a Grande Fome de 1032-1033. Ela foi registrada de forma crua pelo monge Raoul Glaber, que em sua narrativa fala dos horrores daquele momento:

A fome começou no Oriente, atravessou a Grécia, passou pela Itália, chegou à Gália e por fim à Inglaterra.
Quando já não restavam animais, nem frutos, nem raízes, os homens passaram a se alimentar de carcaças, corpos e — finalmente — de carne humana.

A fome era tão generalizada, que se comia de tudo que pudesse ser encontrado. Depois de se alimentarem de animais selvagens e aves, os homens começaram a “recolher para comer todo tipo de carniça e coisas terríveis de mencionar”. Quando já não havia mais nada, passaram ao canibalismo.

Canibalismo na Idade Média, lobos, comedores de criancinhas e vendedores de carne humana.

Imagine você viajando por longas distâncias, já exausto, o que você faria? Naquele momento, deveria pensar bem antes de pedir abrigo. Isso porque os viajantes eram sequestrados por homens mais robustos do que eles, que lhes cortavam os membros, os cozinhavam e os comiam. Muitas pessoas que caminhavam de um lugar a outro para fugir da fome, e que no caminho encontravam hospitalidade, eram degoladas durante a noite e serviam de alimento aos que as haviam recebido em suas casas e “abrigos”.

Chocante, não? Agora imagine que a história de João e Maria não foi mera invenção da cabeça de um escritor muito talentoso. Isso porque havia aqueles que mostravam às crianças uma fruta ou um ovo (em período de fome, ovo era uma iguaria), atraindo-as assim para lugares afastados, onde as matavam e as devoravam.

Em muitos lugares, em desespero, as pessoas desenterravam os corpos dos mortos e saciavam com eles sua fome… O que só ajudava a multiplicar os problemas, disseminando doenças e provocando novas mortes.

Livro História da Morte no Ocidente

A moral do momento foi seriamente abalada e as condenações por parte da igreja insuficientes para resolver o problema. Nesse cenário de horror, como se já não fosse muito consumir carne humana, alguém passou a vendê-la já cozida no mercado de Tournus, na França, como se fosse carne de qualquer animal. O mesmo monge Raoul Glaber diz que quando prenderam a pessoa que fez isso, ele não negou seu “vergonhoso crime”: foi amarrado e queimado na fogueira. Outra criatura “foi à noite desenterrar essa carne que haviam escondido sob a terra, comeu-a, e também foi queimado”.

O cronista descrevia assim o lastimoso estado físico daquela pobre gente:

Não se via outra coisa além de rostos pálidos e esquálidos. Muitos tinham a pele frouxa devido ao inchaço. Até a voz humana se tornou mais aguda, parecida com pequenos gritos de pássaros agonizantes. Os cadáveres, tão numerosos que eram deixados por toda parte sem sepultura, serviam de alimento para os lobos, que depois continuaram por muito tempo buscando sua presa entre os homens.

Antes e depois dessa, fomes e carestias existiram diversas ao longo da Idade Média, mas, se os registros da época estiverem certos, essa Grande Fome de 1032–1033 foi a mais devastadora da história. Não há números exatos de mortos, mas sabe-se que o problema foi geral, sendo que em algumas regiões, aldeias inteiras desapareceram. Não era apenas fome, mas a ruptura total da ordem social, política e cultural. Uma ordem que só foi sendo restaurada (ainda que aos tropeços e com retrocessos) com novas colheitas e melhoria na produção, o que foi baixando o preço dos alimentos, além de momentos de estabilidade política e ações de alguns nobres (exemplo da distribuição de alimentos).

O livro de Jean Verdon, Sombras e Luzes da Idade Média foi consultado em versão em espanhol, que pode ser baixado gratuitamente abaixo

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