
Pouca gente lembra que, antes de Auschwitz, o extermínio judeu já acontecia a céu aberto. Isolamentos, caça e fuzilamentos em massa. Esse foi o chamado “Shoá da bala”.
Em geral, as pessoas associam o Holocausto, extermínio dos judeus ou também chamado de Shoá, a campos de concentração, cercas de arame e câmaras de gás. Mas, antes de Auschwitz se tornar o símbolo do genocídio, com suas câmaras de gás (ou “Shoá do gás”), a morte vinha a céu aberto — diante de vilas inteiras, na beira de fossas improvisadas, com um estampido seco de tiros sucessivos. É essa uma dimensão brutal e, muitas vezes, esquecida do extermínio.
O genocídio dos judeus não nasceu de um único plano, pronto e acabado. Ele foi se desenvolvendo no seio do antissemitismo, que era anterior até mesmo aos nazistas na Alemanha. O que Hitler fez desde que assumiu o controle do país em 1933, foi ir criando campos de concentração, onde muitos judeus eram mandados para trabalhos forçados, em boa medida como forma de ir exaurindo suas forças, até que morressem. Mas, não eram ainda campos de extermínios claramente definidos e com um plano bem traçado do que conhecemos como “Solução Final”.
Nos primeiros tempos, a ideia mais clara era deslocar enormes contingentes de judeus para regiões a serem dominadas pelos alemães. Onde isso se daria não estava claro, mas nesses locais eles seriam deixados à própria sorte, inclusive esperando que morressem, porque a ideia nazista era que os judeus eram uma “ameaça racial” que deveria ser eliminada.
Mesmo antes da Guerra, os judeus eram perceguidos e tinham propriedades e bens confiscados, mas logo passaram e ser presos e levados a campos de trabalho forçado, o que iria se agravando a medida que o tempo passava. Amplas ações de isolamento foram sendo colocadas em prática desde o início com a ocupação da Polônia em 1939 e mesmo com a derrota e ocupação da França em 1940, mas o pior ainda estava por vir.

A “Shoá da bala”
A Segunda Guerra Mundial em geral e a guerra iniciada contra a União Soviética abriu caminho para a radicalização das políticas antissemitas, transformando perseguição e segregação em um programa sistemático de extermínio. Deve-se dizer que nunca houve uma política escrita clara sobre esse extermínio, a fim de não deixar rastros, ficando sempre nas entrelinhas ou nos círculos privados dos mandatários. Mas todos os generais em ação sabiam que não queriam os judeus e tomavam as medidas que achavam “cabíveis”. Assim, de forma mais intensa, no contexto da invasão alemã da União Soviética em 1941, a guerra passou a ser pensada como uma cruzada ideológica e racial. Era clara a visão de Hitler e seus partidários de que sua missão era acabar com o país “marxista judeu” mais importante que existia.
Nesse cenário, atuaram os temidos Einsatzgruppen — unidades móveis de extermínio que seguiam o avanço das tropas alemãs, recebendo ordens de eliminar judeus, comissários soviéticos, líderes comunitários e qualquer pessoa considerada “perigosa” para a ocupação. Em vez de centros de extermínio industrializados, que só apareceriam depois, nesse momento o que havia eram valas, ravinas, clareiras em florestas e campos abertos transformados em cenários de execução em massa.
As comunidades eram reunidas sob pretextos de registro ou “realocação”. Homens, mulheres, crianças e idosos eram conduzidos até as bordas de ravinas e fossas, obrigados a cavar, entregar seus pertences e, muitas vezes, despir-se. Os tiros vinham em sequência, geralmente na nuca, e os corpos empilhavam-se em fileiras e camadas, morbidamente chamadas de “sardinhas”.
Em lugares como Babi Yar, na Ucrânia, ou nos arredores da atual Belarus e dos países bálticos, a paisagem rural tornou-se parte do mecanismo do genocídio. Mas deve-se dizer que esse processo envolveu não apenas forças alemãs, mas também colaboradores locais, milícias, policiais e, em certos casos, a participação — por medo, oportunismo ou ódio — de setores das próprias comunidades.

As consequências da “Shoá da bala”
Esse tipo de extermínio deixou marcas profundas porque era direto, visível e próximo. Diferente das câmaras de gás, que afastavam o ato de matar dos olhares cotidianos, a “Shoá da bala” expôs a violência diante de testemunhas — e também diante dos próprios executores. Apesar da ampla propaganda e da lavagem cerebral feitas nos “alemães de verdade” de que os judeus eram “vermes” que deveriam ser extirpados, muitos soldados e membros das unidades especiais alemães passaram a sofrer colapsos psicológicos, como resultado de suas ações e das cenas que presenciavam. O que, segundo alguns historiadores, foi um dos fatores que levou o regime nazista a buscar métodos “mais distantes”, mais “limpos” e industrializados de assassinato.
Seja como for, como disse, as marcas foram profundas. Dentre as consequências dessa “Shoá da bala”, estima-se que entre 1,5 e 2 milhões de judeus tenham sido assassinados, sem campos ou câmaras de gás, geralmente à beira de valas comuns. Em lugares como Babi Yar, na Ucrânia, 33.771 pessoas foram mortas em apenas dois dias; em Ponary (perto de Vilnius), cerca de 70 mil foram executadas; e no massacre de Rumbula, na Letônia, cerca de 25 mil morreram. Os fuzilamentos eram públicos, muitas vezes testemunhados por vilas inteiras.
Enfim, devemos compreender o Holocausto para além dos campos de concentração e extermínio. Antes dos trens, houve caminhadas forçadas, em geral com altos indíces de morte no processo. Antes do gás, houve tiros, execuções em massa, a sangue frio. Antes do anonimato das mortes contabilizadas, houve famílias inteiras postas de joelhos diante de valas. A “Shoá da bala” começou antes das câmaras de gás e de Auschwitz, e seguiu em prática junto com esta até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Atenção! Esse texto não tem finalidade apologética de um grupo étnico ou de outro, apenas procura repensar uma situação histórica importante no contexto da Segunda Guerra Mundial e da crise humanitária da primeira metade do século XX.

Livro Separados pelo Holocausto


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