Ele é sem dúvida um dos mais destacados historiadores do século XIX. Fez escola, teve diversos seguidores, mas vem sendo muito questionado, especialmente a partir da década de 1930, com o surgimento da Escola dos Annales!
Leopold von Ranke nasceu em 21 de dezembro de 1795, na cidade de Wiehe, que hoje faz parte da Alemanha, mas que na época fazia parte da Prússia. Estudou filologia, na qual se tornou especialista e tradutor, destacando-se no estudo e tradução do Grego Antigo e do Latim para o alemão; protestante que era, estudou também teologia, partindo da concepção luterana; enfim, se tornaria cumulativamente também historiador – em realidade, há quem diga que ele foi o primeiro historiador, como nós entendemos hoje.
Sobre esse último aspecto de sua vida, que mais nos interessa, ele passou a se interessar diretamente pela História nos tempos em que foi professor de Clássicos no Friedrichs Gymnasium, em Frankfurt an der Oder, entre 1817 e 1825. Para ele o mais interessante era o estudo dos historiadores antigos, aqueles que demonstravam mais “metodismo”, a exemplo sobretudo de Tucídides e Tito Lívio, embora também tivesse olhos para Heródoto – não tão metódico assim. Além desses, alguns pensadores e escritores mais próximos de si também foram considerados na sua formação e pesquisas, a exemplo de Goethe, Barthold Georg Niebuhr, Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Schelling e Friedrich Schlegel.
Sua trajetória de historiador começou em 1824, quando lançou Geschichte der Romanischen und Germanischen Völker von 1494 bis 1514 (História dos Povos Latinos e Germânicos de 1494 a 1514). Embora nesse momento faça uso de fontes que depois consideraria “profanas” para o historiador, ele logo seguiria um caminho mais metódico. O sucesso do livro foi tanto, que Ranke ganhou um cargo na Universidade de Berlim (atualmente Universidade Humboldt de Berlim).
Ele se dedicaria sobretudo à História Política e Diplomática – em outros termos, a uma História Estatal ou Oficial. Para fazer isso, Ranke, como aqueles com ele comungariam as ideias – em seu tempo de vida ou depois -, lançaria mão de fontes primárias oficiais escritas, as únicas que considerava realmente dignas de consideração. Isso porque o historiador, segundo ele, poderia e deveria ser objetivo, inteiramente isento, devendo isolar o fato histórico, sem “contaminá-lo”. Como lembram Bourdé e Martin em As Escolas Históricas, “toda reflexão teórica é inútil (no entender de Ranke), quando não prejudicial, por introduzir um elemento de especulação”.
As demais fontes que usamos hoje em dia não eram tidas por Ranke em consideração: as fontes emprestadas da arqueologia, só pra citar um exemplo, não seriam aceitas pois poderiam estar impregnada de subjetivismo, daí não podendo ser usadas pelos historiadores. Já os documentos oficias, escritos, esses sim eram confiáveis. Claro que a Arqueologia ainda estava em formação em sua época, como a própria História estava se constituição como ciência. De qualquer maneira, o paulatino ganho de conhecimentos arqueológicos não impediria que os seguidores de Ranke rejeitassem e resistissem ao uso desses estudos como fontes da Histórica.
Ao falarmos em fonte, temos que ter em mente o lado positivo do papel que teve Ranke para a História como disciplina. Me referi à crítica às fontes, que na época estava voltada a verificação da veracidade ou falsidade das mesmas, inclusive as interpolações (adulterações) sofridas ao longo dos séculos.
Claro também que para entender Ranke, temos que entender o seu tempo, afinal, ele era um “homem do seu tempo”. Ou seja, da nossa parte, a crítica ao que ele escreveu precisa ser feita, mas com o cuidado de antes entendermos o contexto em que ele estava inserido. Ele era um historiador surgido no pós-Revolução Francesa, depois de muitas décadas de discussões iluministas, influenciado pelo Liberalismo Econômico (embora fosse conservador na política). Nele se percebe, além do diálogo com outros pensadores mais ou menos contemporâneos, um diálogo especial com Hegel, a quem critica com frequência, negando Ranke, especialmente, a existência de uma “filosofia da História”.
Ocorreu então dele se tornar o protagonista na “cientifização” da História, em outras palavras, passando a ser considerado por muitos como o “pai da História científica”. E por que isso? Porque ele foi fundamental para definir em grande medida o tom dos escritos históricos posteriores, introduzindo ideais para o uso do “método cientifico na pesquisa histórica”, tais como o que já temos dito, defendendo o uso prioritário de fontes primárias autenticadas – fazendo-se amplo uso da filologia nessa tarefa -, dando ênfase à história narrativa – com seus fatos, causas e consequências – e especialmente em política internacional; colocando, enfim, o imperativo de se mostrar “o passado tal como realmente foi” (“wie es eigentlich gewesen ist”).
Nesse sentido é que se concentrou a maioria das críticas à Ranke. Como lembraria Edward Carr em seu livro Que é História?, de 1961, para Ranke, “a divina providência cuidaria do sentido da História, se o historiador cuidasse dos fatos”. Pra quem gosta de conexões, percebe-se aí a ligação das ideias positivistas/metódicas com a doutrina econômica liberal do Laissez-faire – ideia de não “se intrometer”, “deixar fazer-se”, sem interferências subjetivas. Para a História isso significa a não interferência dos historiadores nos fatos, puros que são, por meio de análises subjetivas que, portanto, “não seriam científicas”. É nesse sentido que Edward Carr e outros (como Fernand Braudel, por exemplo) vê Ranke – assim como aqueles que o seguiram – como um ingênuo, por acreditar ser possível escrever a História sem interferência, sem “contaminação” da subjetividade do historiador. Carr dizia – como disse antes Marc Bloch e outros tantos críticos do historicismo rankeano – que o historiador está inserido em seu tempo e tem perguntas diferentes sobre o mesmo objeto de estudo que possa ter sido analisado por um outro pesquisador em um outro tempo diferente.
Edward Carr está inserido no contexto mais amplo da crítica ao Positivismo e ao Historicismo, coisa que passou a ser central na disciplina História a partir, sobretudo, da fundação da Revista dos Annales, em 1929, com Marc Bloch e Lucien Febvre – embora, no sentido mais amplo das ciências humanas e sociais, Karl Marx e os marxistas já viesse fazendo críticas ferozes ao positivismo já desde o século XIX. Mas, no caso específico da História, é a partir dos annalistas do século XX que passou-se a perguntar, entre tantas outras coisas, se com o Positivismo e o Historicismo haveria mesmo História ou haveria apenas uma “coleção de fatos”. Com o Historicismo não há muito espaço para o cultural – seja qual for a concepção de cultura -, para o social ou mesmo para o econômico na História. Ou seja, não haveria espaço para a crítica do objeto por parte dos historiadores, espaço para visões globais do homem no tempo ou para a “História Problema”.
Aqui vale atentarmos à questão da ingenuidade de Ranke, para clarearmos melhor as coisas. A “ingenuidade” dele, como disse o professor Paulo Cimó Queiroz ao nosso Blog, “limitava-se à crença na possibilidade de se libertar dos condicionamentos subjetivos e assim escrever ‘cientificamente’”. Isso porque, como já mostramos, o documento somente seria confiável para ele após passar pelos duros questionamentos críticos. “Não era como a gente às vezes vê o pessoal dizendo por aí, como se os metódicos fossem pobres imbecis que acreditavam em tudo o que dizia qualquer documento…”.
Mostra de que não eram “pobres imbecis” é que Ranke foi importante no seu tempo e “fez escola”, como dizemos, tendo inclusive conquistado seguidores renomados no mundo, inclusive os franceses Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. Sua corrente perderia forças, sem desaparecer completamente, com o crescimento de críticas isoladas surgidas ainda no século XIX e com o surgimento de críticas mais conjuntas, especialmente a partir dos annalistas, que já apontamos.
Ranke morreu em Berlim, na Alemanha já unificada, no dia 23 de maio de 1886.
Bom, por enquanto é isso. Caso queira saber mais sobre ele, o positivismo ou o historicismo, existem muitos livros, mas o verbete História, do livro História e Memória de Jacques Le Goff é bem interessante. O livro As Escolas Históricas, de Guy Bourdé e Hervé Martin, reserva um espaço interessante aos historiadores metódicos e a Adolf von Ranke, colocados num cenário mais amplo de transformações na prática da História e do ofício do historiador. Outro livro do mesmo tipo é A Constituição da História como Ciência: De Ranke a Braudel, organizado por Marcos Antônio Lopes e Julio Bentivoglio. Ainda de Júlio Bentivoglio, dessa vez em parceria com Marcelo Durão R. da Cunha, há o livro A religião da História: as raízes teológicas da moderna ciência histórica alemã em Humboldt, Ranke e Droysen.
Além dos e-books que circulam na internet, há alguns materiais de Ranke para download gratuito livre, caso queiram baixar:
- Heródoto e Tucídides (Excerto do primeiro volume da História Universal)
- Englische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahrhundert (A History of England Principally in the Seventeenth Century, 1859-1869) Tradução para o Ingles Volume Um / Volume Dois / Volume Três / Volume Quatro / Volume Cinco / Volume Seis
Enfim, há os livros do próprio autor, cuja lista dos principais segue abaixo.
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